"- Não vou contar como virei dragão, pois tenho também de contar para os outros para acabar de uma vez para sempre com isso tudo. Aliás, só soube que era dragão quando ouvi você usar essa palavra medonha naquela manhã em que voltei. Mas vou lhe dizer como deixei de ser dragão.
- Vá em frente - disse Edmundo.
- Bem, na noite passada eu estava mais infeliz do que nunca. Este bracelete horrível me machucou como o quê...
- Não machuca mais?
Eustáquio sorriu - um sorriso diferente daquele que Edmundo conhecia - e facilmente deslizou o bracelete para fora do braço.
- Aqui está - disse Eustáquio. - Se alguém quiser, que fique com ele. Mas como ia dizendo, estava ali deitado, pensando na minha vida, quando de repente... Mas, pense bem, isso pode ter sido um sonho. Não sei...
- Continue - disse Edmundo, com uma paciência espantosa.
- Bem, seja lá como for... Olhei e vi a última coisa que esperava ver: um enorme leão avançando para mim. E era estranho porque, apesar de não haver lua, por onde o leão passava havia luar. Foi chegando, chegando. E eu, apavorado. Você talvez pense que eu, sendo um dragão, poderia derrubar a fera com a maior facilidade. Mas não era esse tipo de medo. Não temia que me comesse, mas tinha medo dele... não sei se está entendendo o que eu quero dizer... Chegou pertinho de mim e me olhou nos olhos. Fechei os meus, mas não adiantou nada, porque ele me disse que o seguisse.
- Falava?
- Agora que você está me perguntando, não sei mais. Mas, de qualquer maneira, dizia coisas. E eu sabia que tinha que fazer o que me dizia, porque me levantei e o segui. Levou-me por um caminho muito comprido, para o interior das montanhas. E o halo sempre lá envolvendo-o. Finalmente chegamos ao alto de uma montanha que eu nunca vira antes, no cimo da qual havia um jardim. No meio do jardim havia uma nascente de água. Vi que era uma nascente porque a água brotava do fundo, mas era muito maior do que a maioria das nascentes - parecia uma grande piscina redonda, para a qual se descia em graus de mármore. Nunca tinha visto água tão clara e achei que se me banhasse ali talvez passasse a dor na pata. Mas o leão me disse para tirar a roupa primeiro. Para dizer a verdade, não sei se falou em voz alta ou não. Ia responder que não tinha roupa, quando me lembrei que os dragões são, de certo modo, parecidos com as serpentes, e estas largam a pele. "Sem dúvida alguma é o que ele quer", pensei.
Assim, comecei a esfregar-me, e as escamas começaram a cair de todos os lados. Raspei ainda mais fundo e, em vez de caírem as escamas, começaram a cair a pele toda, inteirinha, como depois de uma doença ou como a casca de uma banana. Num minuto, ou dois, fiquei sem pele. Estava lá no chão, meio repugnante. Era uma sensação maravilhosa. Comecei a descer à fonte para o banho. Quando ia enfiando os pés na água, vi que estavam rugosos e cheios de escamas como antes. "Está bem", pensei, "estou vendo que tenho outra camada debaixo da primeira e também tenho de tirá-la". Esfreguei-me de novo no chão e mais uma vez a pele se descolou e saiu; deixei-a então ao lado da outra e desci de novo para o banho. E aí aconteceu exatamente a mesma coisa. Pensava: "Deus do céu! Quantas peles terei de despir?" Como estava louco para molhar a pata, esfreguei-me pela terceira vez e tirei uma terceira pele. Mas ao olhar-me na água vi que estava na mesma. Então o leão disse (mas não sei se falou): "Eu tiro a sua pele". Tinha muito medo daquelas garras, mas, ao mesmo tempo, estava louco para ver-me livre daquilo. Por isso me deitei de costas e deixei que ele tirasse a minha pele. A primeira unhada que me deu foi tão funda que julguei ter me atingido o coração. E quando começou a tirar-me a pele senti a pior dor da minha vida. A única coisa que me fazia aguentar era o prazer de sentir que me tirava a pele. É como quem tira um espinho de um lugar dolorido. Dói pra valer, mas é bom ver o espinho sair.
- Estou entendendo - disse Edmundo.
- Tirou-me aquela coisa horrível, como eu achava que tinha feito das outras vezes, e lá estava ela sobre a relva, muito mais dura e escura do que as outras. E ali estava eu também, macio e delicado como um frango depenado e muito menor do que antes. Nessa altura agarrou-me - não gostei muito, pois estava todo sensível sem a pele - e atirou-me dentro da água. A princípio ardeu muito, mas em seguida foi uma delícia. Quando comecei a nadar, reparei que a dor do braço havia desaparecido completamente. Compreendi a razão. Tinha voltado a ser gente."
Gosto muito de ler a série As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, e essa parte retirada do livro A Viagem do Peregrino da Alvorada, em que Eustáquio, primo de Lúcia e Edmundo Pevensie, deixa de ser dragão, fez-me refletir.
Assim como Eustáquio, também temos nosso dragão, não aquele que solta fumaça pelas narinas e tem enormes asas, mas nosso dragão é representado por nosso venho homem, que nos aprisiona e nos impede de ver quem realmente somos: à imagem e semelhança de Deus. Aslam disse para Eustáquio tirar sua pele, Deus também nos manda tirar nosso velho homem, nosso dragão, deixar cair as camadas mundanas que nos prendem, para que possamos nos tornar filhos de Deus, voltar à essência. "Mas a todos quantos o receberem, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome" (Jo.1:12).
Não é fácil renunciar nossas vontades, nossas vidas. Sozinhos não conseguiremos, poderemos tentar arrancar o dragão com nossas próprias forças, mas será em vão, pois há camadas mais fundas, que só Deus, com sua maravilhosa graça, consegue tirar. Irá doer, mas só de saber que nos veremos como realmente somos, que seremos filhos de um grande Pai, já é um alívio. "Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória" (2Co.4: 17). Assim como o oleiro precisa quebrar o vaso várias vezes para este atingir a perfeição, Deus precisa arrancar a mais profunda pele de dragão que há em nós, para que então possamos atingir a perfeição, a condição de filhos de Deus. Devemos deixar nosso velho homem, entrar nas águas e limpar todo resto do dragão que há em nós e, quando sairmos das águas, seremos novas criaturas, filhos de Deus. "E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas" (2Co.5:17). "Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados filhos de Deus; e de fato, somos filhos de Deus" (1Jo.3:1). Não há nada melhor que ser chamado de Filho Amado pelo próprio Pai.
Que possamos deixar cair nosso velho dragão, seremos bem melhores sem ele.
Nooooooooossa Bru, muito massa!! Essa reflexão ficou ótima, Deus continue abençoando sua vida. Vc é preciosa, te amo!
ResponderExcluirBáh
Nossa, muito legal! Eu adorei :)
ResponderExcluirBeijos :*
itcolorful.blogspot.com
Nossa, só me lembrava de fragmentos dessa parte do livro. Gostei da analise, irei acompanhar o blog.
ResponderExcluir[]'s